sexta-feira, julho 09, 2004

As Rosas de Atacama - "Tano"



Don Giuseppe costumava dizer que era feliz em consequência de uma série de erros que recordava gostosamente. O primeiro deles aconteceu em 1946, quando o jovem genovês embarcou finalmente rumo à América, a uma América que imaginava com os braços da Estátua da Liberdade, abertos e hospitaleiros. Deixava para trás uma Itália em ruínas, o pesadelo da guerra e muitos vizinhos que, ainda mal enterradas as camisas negras do fascismo, vestiam roupagens democráticas.

(...)

Passados cinco dias de navegação, um tripulante gelou-lhe a alma quando lhe comunicou que o barco navegava efectivamente rumo à América, mas à América do Sul...

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Logo que chegaram a Buenos Aires e Don Giuseppe pisou pela primeira vez terra americana...encarregou-se de pôr em contacto com um camionista que transportava colchões da capital argentina para as províncias (Mendoza).

- Muito bem tano, levo-te de graça, pago-te as dormidas e as refeições e, em troca, ajudas-me a descarregar, mas a tua verdadeira missão consiste em falares comigo durante o caminho. Fala-me sem parar, acerca de tudo, mesmo que só digas tolices.

(...)

Haviam percorrido várias centenas de quilómetros quando, ao amanhecer do dia seguinte, o camionista se desviou da estrada por um caminho de terra que os levou até às casa de uma fazenda. Havia por lá outros camionistas, mas sobretudo havia carne, muita carne, reses inteiras abertas em cruz a assar sob o olhar atento de uns gaúchos. O italiano comeu e bebeu como nunca na sua vida, e tanto que o camionista anfitrião, que também não se deixou ficar atrás, o mandou continuar a viagem na zona de carga, dormindo a bebedeira em cima do fofo dos colchões.

Don Giuseppe nunca soube o que aconteceu em Mendoza, se é que o camião alguma vez parou nessa cidade. Apenas se lembrava de que foi acordado por um frio intenso e pelas vozes de uns homens de uniforme verde que o mandavam descer.

Com a cabeça a estalar e uma sede cavalar, Don Giuseppe saltou para o chão e estremeceu diante da paisagem agreste dos Andes nevados. O seu gesto de assombro fez os carabineiros do Chile perceberem que ele não sabia onde raio estava.

- Aquela estátua é o Cristo Redentor, a fronteira. (...) para lá é a Argentina. Para cá é o Chile.

Só então Don Giuseppe verificou que o motorista do camião não era o mesmo que o tinha levado de Buenos Aires, e no seu atropelado dialecto genovês repetiu mil e uma vezes que o seu destino era Mendoza, narrando pelo meio os estragos do churrasco e do muito vinho que bebera.

Do discurso dos carabineiros chilenos, a única coisa que Don Giuseppe entendeu foi que lhe perguntaram se gostara do churrasco e do vinho argentino. Respondeu, como pôde, que sim, e isso bastou para que os polícias chilenos o puxassem para a cantina do destacamento. Ali, o emigrante entregou-se ao segundo festim de carne e vinho, com a consequente bebedeira, da qual acordou transformado em sócio de um sargento dedicado à criação de perus e outras aves de capoeira.

Anos mais tarde, Don Giuseppe, para uns o tano, para outros o bachicha, abriu no bairro da minha infância em Santiago um armazém de géneros alimentícios importados. (...)

A melhor festa no armazém teve lugar num Domingo, 4 de Setembro de 1970. Nessa noite o bairro tinha muitos motivos para estar alegre; Salvador Allende ganhara as eleições presidenciais, Don Giuseppe casava com a senhora Delfina depois de uma discreta relação mantida durante vinte anos e, para culminar a festa, comunicou-nos, emocionado, que acabava de se nacionalizar chileno.

Vi-o pela última vez em 1994. Era um velho. (...) Bebi com ele vários copos de vinho, ouvi mais uma vez a sua história, e doeu-me ter de responder que sim quando quis saber se era verdade que na Europa tratavam mal os emigrantes.




In "Rosas de Atacama", conjunto de pequenas narrativas de Luis Sepúlveda, escritor chileno, andarilho das cinco partidas do mundo que nos retrata com rostos anónimos o mundo em que vivemos.

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